A OAB Nacional ingressou no STF com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra Resolução n. 181 do Conselho Nacional do Ministério Público que dispõe sobre a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do MP. O Conselho Pleno da Ordem votou pelo ajuizamento da ADI na mais recente sessão, realizada em setembro. Segundo a entidade, a resolução, entre várias outras inconstitucionalidades, visa quebrar a paridade entre Ministério Público e advocacia. A ADI 5793 está sob relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.
O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, criticou com veemência o teor do normativo. “Essa resolução traz inovações sobre um assunto absolutamente delicado no âmbito das investigações criminais pelo Ministério Público. Sob a nossa ótica, restam configuradas flagrantes e gravíssimas inconstitucionalidades”, resumiu. A ação também é assinada por Jarbas Vasconcelos, presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas, e Charles Dias, procurador nacional de defesa das prerrogativas.
Para a Ordem, o texto fere os princípios de reserva legal, segurança jurídica, indisponibilidade da ação penal, imparcialidade, impessoalidade, ampla defesa, contraditório, devido processo legal e inviolabilidade de domicílio, além de usurpar a competência privativa da União e da instituição policial, extrapolando, também, o poder regulamentar conferido ao CNMP.
Entre os temas levantados pela OAB que ferem a Constituição estão acordos de não persecução penal, a não homologação desses acordos pelo Judiciário, a atuação do Ministério Público como acusador e como juiz, a participação da polícia nas investigações e a possibilidade indiscriminada de diligências pelo MP. Por já estar em vigor, a Ordem requereu ao STF a concessão de medida liminar suspendendo imediatamente os artigos questionados.
“Tem-se que a resolução questionada, a pretexto de regulamentar sobre instauração e regras procedimentais de investigação criminal, extrapolou seu poder regulamentar (art. 130-A, §2, I, da CF) inovando no ordenamento jurídico. Isso porque, além de competir privativamente à União legislar sobre matéria processual e penal (art. 22, I, da CF), a norma questionada permitiu ao Ministério Público dispensar a ação penal e adentrar em estabelecimentos para vistorias, inspeções e quaisquer outras diligências sem o crivo do Poder Judiciário, em completa violação ao texto constitucional”, afirma a OAB na ADI.
Não persecução penal
Entre vários pontos levantados pela Ordem, a entidade destaca o art. 18 da referida resolução, que versa sobre o acordo de não persecução penal. Segundo a ADI, nos termos delimitados pela resolução, cabe ao Ministério Público avaliar a admissibilidade de celebração de acordo com o fito de impedir a instauração de persecução penal nos casos de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, desde que o agente confesse a pratica do crime e se submeta às restrições/sanções impostas pelo órgão.
“Trata-se de regramento que viola o princípio da indisponibilidade da ação penal, previsto no art. 129, I, da Constituição Federal, que assevera a competência privativa do MP para a instauração de ação penal pública. Em se tratando de mandamento constitucional, apenas situações excepcionais podem justificar o não oferecimento da ação penal”, pontua a OAB.
“O art. 18 da Resolução, ao inovar em matéria processual penal, usurpou competência privativa da União, estabelecida no art. 22, I, da CF, razão pela qual o acordo de não persecução penal deve ser extirpado do ordenamento jurídico. Por tais fundamentos, evidencia-se a inconstitucionalidade da Resolução por violação ao princípio da reserva legal, por extrapolação do poder constitucional regulamentar (art. art. 130-A, §2º, I, da CF) e, por usurpação de competência privativa da União (art. 22, I, da CF)”, diz a ADI.
Sem o Judiciário
A OAB também chama atenção para outro ponto do art. 18 da Resolução n. 181 do CNMP. Nele, constata-se que “acordo de não-persecução penal” celebrado na etapa pré-processual não é submetido à homologação do Poder Judiciário. “O juiz, comprometido com a imparcialidade (art. 37, CF), exerce papel fundamental na homologação dos acordos, pois analisa os termos avençados sob o viés da legalidade e constitucionalidade. Ademais, garante que sejam preservados os direitos e garantias do colaborador”, lembra a OAB.
“Não havendo a homologação, o acordo é precário, suscetível a questionamentos futuros, podendo o juiz se negar a arquivar os autos ainda que o negócio jurídico tenha sido integralmente cumprido, conforme prevê do art. 19 da Resolução”, diz a OAB. A Ordem relembra julgamentos do STF para afirmar que o direito subjetivo do colaborador ao prêmio nasce e se perfectibiliza na medida em que ele cumpre os seus deveres. A homologação voluntária, regular e legal gera vinculação condicionada ao cumprimento das obrigações assumidas pela colaboração. Outro ponto inconstitucional, segundo a Ordem, é a imposição de sanções de restrição de liberdade ou de bens, sem a observância do devido processo legal.
“Nesses termos, é essencial a apreciação do acordo pelo juiz, o qual irá aferir quanto ao preenchimento dos requisitos entabulados, impedindo que o ofensor cumpra um acordo que não terá eficácia jurídica em razão de vícios insanáveis. O tratamento dispensado pela Resolução à matéria, impede a apreciação de questões que são de competência jurisdicional exclusiva, quais sejam: aferição de excludente de ilicitude, excludente de culpabilidade, extinção de punibilidade e atipicidade. Contudo, a ausência de homologação do acordo, acarretará a verificação tardia de tais hipóteses, pois o ato somente é submetido ao julgador no momento do arquivamento, fase em que o colaborador já terá se submetido às sanções impostas”, afirma.
Acusador e juiz
A OAB também critica duramente a Resolução n. 181 do CNMP ao conferir ao Ministério Público a prerrogativa de fiscalizar o cumprimento dos acordos, “maculando de parcialidade o acompanhamento das sanções impostas”. “Sendo o órgão acusador parte desse negócio jurídico, ele não terá isenção para a devida apreciação dos motivos de descumprimento justificado da medida, o que representa uma violação aos princípios do contraditório e ampla defesa (art. 5º, inc. LV, CF)”, afirma.
“Quanto a tal ponto, cumpre indagar a natureza jurídica do acordo celebrado. Por não ser endossado pelo magistrado, pode-se duvidar da sua eficácia executiva, o que compromete mais uma vez o princípio da segurança jurídica, consagrado no art. 5º, caput, da Constituição Federal”, critica. “Nota-se que a referida resolução culmina na concentração de poderes à acusação, a qual investiga e ao mesmo tempo impõe penalidades, o que é típico do sistema inquisitorial, não admitido pelo ordenamento brasileiro. O Ministério Público, ao impor restrições a bens jurídicos, ultrapassa a sua competência, encerrando por cumular atuação dúplice: desempenha a função de acusador e de juiz.”
Autoridade policial
A OAB aponta na ADI protocolada a inconstitucionalidade, ainda, do art. 1º, caput, e art. 2º, inciso V. Tratam-se de dispositivos que permitem ao Ministério Público a instauração de procedimento investigatório ou a transferência desta tarefa à autoridade policial de acordo com sua conveniência. Para a Ordem, por se tratar de apuração que pode resultar em privação de liberdade, não é compatível com o princípio da impessoalidade permitir que o MP possa escolher quem ou o que deverá investigar.
“No Estado republicano, não há espaço para discricionariedade em matéria de persecução criminal, devendo a opção pela investigação direta ministerial ocorrer em circunstâncias específicas, que justifiquem a dispensa do aparato policial”, afirma a OAB. “Não é cabível o alijamento da missão constitucional precípua da autoridade policial em função do acréscimo de poderes ao Ministério Público. Tratam-se de instituições autônomas e independentes, sendo inadequada a redução dos poderes investigatórios da polícia por meio de uma resolução editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público.”
A OAB explica que a referida resolução não delimita hipóteses objetivas em que o MP poderá dispensar a estrutura de investigação da Polícia, além de não haver critérios suficientes que diferenciem as situações em que deverá ocorrer o acordo de não persecução, a instauração da investigação pelo MP ou a investigação pela autoridade policial.
Diligências
Por fim, a OAB aponta a inconstitucionalidade do art. 7 da Resolução n. 181 do CNMP, que permite ao Ministério Público, no curso de investigações penais, fazer ou determinar vistorias, inspeções e quaisquer outras diligências, inclusive em organizações militares, violando o princípio da inviolabilidade domiciliar, disposto no art. 5º, inciso XI, da Constituição.
“Tal redação permite aos membros do Ministério Público adentrar em estabelecimentos de todo tipo, ‘inclusive organizações militares’, sem o prévio controle do Poder Judiciário acerca da presença ou não dos requisitos para o deferimento da medida extrema. Embora eufemisticamente denominada ‘vistoria e inspeção’, a medida implica na supressão casuística da garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar”, diz a OAB.
O mesmo artigo, nos incisos II e III, também seriam inconstitucionais, pois permitem ao MP requisitar informações, exames, perícias, documentos indiscriminadamente, sem qualquer análise prévia do judiciário quanto à análise da conveniência dessas solicitações. “Os dispositivos facultam ao MP, à mingua de balizas claras, exigir de quem quer que seja a entrega de quaisquer documentos, sejam eles bancários, fiscais, telefônicos e telemáticos, à margem da autorização judicial. Sendo a entrega de caráter obrigatório, ela demanda de reserva de jurisdição”, revela a OAB.